1-
Uma
Estrutura em Permanente Desequilíbrio
Por
Regina Célia Pinto
"Pois
quando eu te vejo eu desejo o teu desejo..."
Logo
que acessamos o Dos de Copas que está no Museu do Essencial
e do Além Disso temos a visão de um computador antigo
(Power Mac Performa 6300 / 160a.k.a. Performa 6360) com algumas indicações
técnicas (1). Todavia, o que de pronto chama nossa atenção
é um casal de bonecos amantes nus, lendo (?) um livro em primeiro
plano. Que livro?... Não se sabe, mas os bonecos são facilmente
identificados e com certeza fazem parte da infância da menina
Muriel. Quando o mouse toca os dois amantes, para surpresa nossa eles
se tranformam numa outra imagem de computador, com mais indicações
técnicas. Da leitura mais ou menos atenta dos dois amantes não
há explicações...
Depois
o nosso olhar se desvia para outros pontos da página e atinge
finalmente as duas taças que são os elementos que desencadeiam
o jogo que foi criado em agosto de 2001. A taça da esquerda inicia
o jogo:
O amor é um jogo?
Trata-se
de uma carta de baralho: o 2 de copas, onde o 2 de copas é representado
por um casal de amantes animado e envolvido na mais antiga
brincadeira do mundo. A designer Muriel com muita competência
aproveitou-se da simetria inversa presente nas cartas de um baralho
para construir os amantes. Sendo que, ao mesmo tempo em que se ama,
o casal pratica
malabarismos com taças, a moda dos malabaristas de circo. O número
de taças
pode ser ampliado se clicarmos nos numerais das cartas. Assim, o casal
pode chegar a se amar e jogar quatro taças ao mesmo tempo. Do
lado esquerdo da tela estão quatro diferentes tipos de taças.
O jogador também pode escolher
com qual delas quer jogar.
Existem
também algumas setas, à direita, embaixo, que quando clicadas,
alternam a posição dos amantes, o que está embaixo
fica em cima e o que está em cima fica em baixo, isso tudo, sem
parar com os malabarismos! Divertido!
;-)
"Quero
ficar no teu corpo como tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem...
Quero
brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem"
(Tatuagem,
fragmento - Ruy Guerra e Chico Buarque)
Esse
jogo de Muriel Frega, com tão poucos elementos consegue dizer
muito
sobre o relacionamento entre homem e mulher e revela com muito senso
de
humor que " O amor é a única estrutura em permanente
desequilíbrio."
Ele
me remete também à Lygia Clark (1920/1988), conhecida
artista
brasileira, que também trabalhou com o corpo / Eros e Thanatos,
a partir dos
anos 60, abrindo, com certeza, o caminho para a argentina Muriel, nascida
em 1972.
Lygia
Clark elaborou a "Roupa Corpo Roupa", uma série de
vestimentas que procuravam estabelecer um contacto entre os sexos através
da descoberta do homem na mulher e vice-versa. A primeira, a que chamou
"Eu e Tu", consistia
em duas roupas ligadas por um cordão umbilical. Ao abrir os fechos
da roupa do parceiro o homem e a mulher encontravam cheios de surpresa
o seu próprio corpo no corpo do parceiro.
As roupas elaboradas por Lygia tinham função oposta da
habitual, em vez de
cobrir e proteger o corpo, serviam para "desvendá-lo".
O corpo transformado
em rosto / máscara imposta pela sociedade. A consciência
individual. As roupas são como que um mediador entre sociedade
e natureza. Com elas, as imposições sociais do Eu cedem
lugar à natureza reprimida. O indivíduo como
ser social dá lugar a um ser anônimo. Escondido na "Roupa
Corpo Roupa", ele escapa das determinações do grupo.
A barreira de plástico grosso encoraja o toque e torna o indivíduo
disponível para manter contacto com
outras forças, normalmente contidas, especialmente aquelas sempre
encontradas no relacionamento homem / mulher, as forças contraditórias
do Amor e da Morte. Eros e Thanatos.
Temendo
este depois da vida que não é mais vida, que é
Morte, os súditos de nossa sociedade passam a temer a morte e
a aceitar a vida que lhes é imposta. E se transformam em seres
incapazes de oferecer suas vidas a si
mesmos, incapazes de correr o risco de morrer. Incapazes de viver, pois
não querer morrer e não querer viver são a mesma
coisa. Incapazes de viver, pois só há um meio de não
morrer: já estar morto. (2)
Comparar
os trabalhos de Lygia Clark e Muriel Frega é observar um pouco
o
relacionamento masculino / feminino na Arte através do tempo.
Julguei interessante mostrar isso para vocês.
Para
finalizar gostaria de recomendar também que visitassem o novíssimo
trabalho de uma outra excelente artista que também faz parte
de nossa lista:
Annie
Abrahams - http://www.bram.org/pain
.
Lá vocês encontrarão um trabalho muito poético
e entre outras coisas também bastante envolvido com o relacionamento
masculino e feminino. Tenho certeza que, assim como eu,
passarão muito tempo se divertindo com ele.
Notas:
1. Esse trabalho foi preparado por Muriel Frega para o sótão
do Museu do Essencial e do Além Disso e por isso tem essa introdução
com o computador.
2. RODRIGUES, José Carlos. "O tabu da morte". Rio de
Janeiro, Achiamé, 1983, p. 283.