O Espaço Fluido da XXV Bienal de São Paulo
Priscila Arantes

A palavra de ordem da XXV Bienal de São Paulo (Brasil), que estará em exposição em São Paulo até 02 de junho é Iconografias Metropolitanas. A partir da curadoria do alemão Alfons Hug, a mostra busca trazer ao público a idéia de como a arte tem reagido frente às transformações culturais e sociais das metrópoles contemporâneas neste início de século.

Uma característica desta Bienal é o fato dela lidar com arte contemporânea e, portanto, com trabalhos que muitas vezes não utilizam dos suportes ditos tradicionais. É claro que encontramos ainda a pintura em tela ou a escultura em madeira, mas esta Bienal inova trazendo ao público muitos trabalhos em videoarte e em arte digital, como é o caso da seção de net arte, uma seção que apresenta um tipo de produção artística que reclama a participação do público e onde o antigo espectador troca a relação contemplativa diante do objeto artístico por uma relação vivida durante um processo de descobertas em tempo real.

Sob a curadoria de Christine Mello o fio condutor da seção de net arte parece ter sido pensar o espaço da rede enquanto uma grande metrópole. Explorar de forma criativa e poética todas as potencialidades oferecidas pelas redes telemáticas desenvolvendo propostas que seriam impossíveis se não estivessem na rede foi o grande desafio colocado aos nove artistas escolhidos pela curadora. Diferentemente da cidade real, esta cidade virtual parece não ter fronteiras e as distâncias espaciais aqui parecem não fazer nenhum sentido. Aqui os espaços e lugares não se constroem através de ruas, de fronteiras ou espaços definidos, mas através de links, labirintos, sites, delineando uma cartografia móvel e fluida, em constante devir, que acompanha o fluxo comunicativo. Longe de ser uma condição a priori, como diria Kant, o ciberespaço é um espaço modelizável, um espaço virtual, eletrônico, imaterial, em constante movimento. O espaço, aqui, parece esfarelar-se tornando-se um abstrato que troca sua imobilidade por uma mobilidade virtual: "...ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças", diria Deleuze.

Apesar de estarem trabalhando dentro de uma mesma proposta temática, os nove trabalhos da seção de net arte apresentaram propostas bastante diversas . Temos aí desde trabalhos que procuraram explorar o potencial telecomunicativo oferecido pela rede, através de criações coletivas e da subversão de conceitos como espaço real e virtual (que muitas vezes, possibilitam a intervenção remota em espaços distantes, ou trazem espaços remotos ao espaço da rede) como, também, trabalhos que procuraram explorar de maneira mais evidente a convergência entre arte e biologia e/ou a simbiose entre o orgânico e o artificial. Por outro lado a seção de net arte contou não só com nomes pioneiros das artes telemáticas do país como também com artistas advindos de outras áreas do fazer artístico, como do vídeo e das artes plásticas.


Em seu Plural Maps: lost in São Paulo (www.lucialeao.pro.br/pluralmaps) Lúcia Leão desenvolve uma espécie de metáfora entre o espaço da metrópole e o espaço fluido da rede. Realiza uma releitura da cartografia da cidade de São Paulo a partir do tema do labirinto, tema que vem percorrendo vários outros trabalhos da artista. É um projeto de net arte colaborativa que incorpora labirintos construídos em VRML e links que levam o usuário a pontos específicos da cidade a partir de imagens da cena urbana paulistana. O usuário tem, assim, a possibilidade de ter acesso, em tempo real, a várias imagens da cena paulistana. Com isso a artista coloca em evidência o poder de ruptura das distâncias espaço-temporais possibilitadas pela rede. Oferece assim, uma cartografia fluida da cidade de São Paulo, que vai se construindo em tempo real, na medida em que o usuário acessa os links disponíveis para a navegação. Brinca, em um mesmo espaço, com as concepções do espaço virtual e real, trazendo para dentro do espaço virtual da rede um espaço real da metrópole paulistana captado por webcams. Destrói, de maneira simples, a barreira espacial, trazendo para o interior da WWW, e portanto, para a casa do usuário, um espaço distante.

Já Gilbertto Prado, um dos pioneiros da arte telemática no Brasil, nos oferece um espaço de pura síntese, criando um ambiente imersivo onírico utilizando tecnologia de realidade virtual. Em Desertesejo (www.itaucultural.org.br/desertesejo) o usuário tem a possibilidade de navegar dentro de um ambiente virtual interativo que comporta até 50 multiusuários. O site inicia-se dentro de uma caverna de onde caem pedras. Ao clicarmos sobre uma das pedras escolhemos nosso avatar que pode adquirir a forma de uma cobra, um pássaro ou um tigre. Somos então convidados a navegar pelo espaço do deserto, um ambiente onírico que pode ser compartilhado com outros viajantes. O projeto é construído por 3 percursos: o ouro, onde a navegação é solitária, viridis onde o viajante vê a presença de outros viajantes e plumas, onde o viajante pode interagir diretamente com os outros via chat 3d. É a zona do contato e da partilha entre os avatares dos diferentes usuários. Do título do trabalho, Desertesejo Gilbertto Prado parece colocar em destaque a condição do sujeito pós-moderno, um sujeito solitário que nem sempre tem relação com aqueles que lhe estão próximos espacialmente, mas com aqueles que ele deseja e tem afinidades. Realiza, assim, uma espécie de referência metalinguística às comunidades virtuais e às possibilidades de partilha e de convivência propiciadas pelas redes telemáticas.


Desertesejo de Gilbertto Prado.

Em ARTEMUNDO, BODY e PATHOS (www.satmundi.com) Ricardo Barreto nos oferece um tríptico: três trabalhos que fazem parte do site experimental Satmundi, um site que incorpora uma série de trabalhos de outros artistas e pesquisadores em arte digital. Em Artemundo Barreto nos oferece uma reflexão do papel da arte no mundo contemporâneo: contrariamente aos defensores de vanguarda que propunham a antiarte, ou da corrente pós-moderna que defende a idéia de uma estetização do cotidiano, Ricardo reclama por uma espécie de mundialização da estética. A meta da arte contemporânea é falar dos problemas do mundo; daí o nome do trabalho: artemundo. Para tal convidou vários artistas que fizeram releituras de uma série de problemas mundiais tais como a ecologia e o problema nuclear. O trabalho ainda oferece a possibilidade do usuário/público enviar estas criações para outras pessoas, de tal maneira que o usuário tem a possibilidade, através da internet, de contaminar o mundo com os problemas do mundo, numa espécie de arte a serviço da "ordem" mundial. O trabalho ainda oferece um ambiente em VRML onde há a possibilidade de navegar em direção a um planeta: o planeta Terra. Já BODY, oferece uma viagem ao espaço do corpo humano. Aqui a imagem de um skin head, morto em Berlim, se apresenta na tela como um corpo repugnante. À medida que o usuário passa o mouse sobre a imagem, o corpo vai ganhando vida através de uma linguagem poética. Em PATHOS, que significa emoção em grego, o artista oferece vários ambientes imersivos que se utilizam de realidade virtual. Constrói mundos abstratos de puras formas, cores e sons, que conduzem o viajante a situações e campos de forças distintos. A sensação que se tem é que estamos fazendo uma viagem pelo tempo e pelo espaço, uma espécie de viagem pluridimensional.

Em O sol de Sempre (paralelosclandestinos.net) Enrica Bernardelli explora a fronteira entre o virtual e o não virtual a partir de sombras de objetos que são projetadas em frente à imagem solar. A imagem do sol é captada a partir do paralelo 22 e meridiano 43 do Rio de Janeiro. Um computador recolhe a imagem e a envia para um servidor de rede que permite que o usuário encaminhe sua sombra- ou o seu paralelo clandestino- que passa a inserir-se no trabalho, como aponta Christine Mello. O que vemos, contudo, são sempre as sombras dos objetos e não os próprios objetos. Desta forma simples Enrica brinca com a idéia de limite entre o objeto, que não é mostrado, e sua sombra, o não-objeto, aquilo que é virtual e o que não é. Nos remete á teoria dos dois mundos de Platão: o mundo inteligível e o mundo sensível, o mundo real e o mundo das sombras. Mas neste caso, Enrica não deixa os limites precisos como deixara Platão afinal o que é virtual, a sombra do objeto ou o objeto que não é visto?

Lucas Bambozzi em Meta 4 walls (www.bienalsãopaulo.org.br/Meta4walls) também desenvolve uma espécie de metalinguagem espacial das condições do ciberespaço, mas neste caso, não de sua condição labiríntica, mas das questões do público e do privado que se colocam quando falamos da WWW. O projeto convida o usuário a visitar uma série de links ilícitos e pornográficos. A cada vez que o usuário tenta fechar o trabalho mais janelas se abrem com palavras que deixam o usuário constrangido. Temos, assim, a sensação de estarmos sendo vigiados e que nossa privacidade, espaço onde nos permitimos a pensamentos e atitudes mais livres, é violada. O trabalho evidencia o fato de que, com o advento da Internet, há uma invasão de privacidade que atinge milhões de pessoas: aqui o usuário é impelido a receber lixos e mensagens sem prévia autorização.

Já Ceci n'est pas un nike (www.desvirtual.com/nike) Gisele Beilguelman nos oferece a imagem de um tênis Nike realizando uma metáfora do trabalho La trahison dês images (Ceci n est une pipe) do pintor surrealista René Magritte. Diversamente do quadro surrealista o conflito conceitual não se estabelece somente entre a idéia de imagem e a sua representação, mas, sim, entre o significado de interface e superfície (site/nike.) Ao clicar sobre o Nike o usuário é convidado a participar de um jogo, destruindo e/ou criando o seu próprio Nike. Como aponta Christine Mello, ao compartilharmos deste jogo, a artista permite que o nosso próprio texto/imagem se insira ao trabalho, criando um grande palimpsesto coletivo . A artista, assim, evidencia o potencial, viabilizado pelas redes telemáticas, da interferência social e coletiva.

Em Literaterra/Landsscript (www.teksto.com.br) Artur Matuck propõe uma escrita híbrida ou ciborgiana fruto da criação dialógica entre o homem e a máquina. O site tem início com a imagem de uma máquina de escrever. Na medida em que escrevemos, nossas frases vão sendo automaticamente alteradas pelo computador que a reconstrói de uma outra forma num processo híbrido de criação entre o usuário/escritor e a máquina/escritora. Esta escrita híbrida atualiza-se através de processos computacionais que atuam semi-randomicamente em relação às palavras que lhe são apresentadas, rompendo com normas de ortografia e gerando uma proposta de "escritura" co-autorada pelo computador. Uma máquina geradora e coletora de neologismos que cria novas palavras e novos significados a partir da des-escritura das frases originais. O artista busca, assim, não só evidenciar o processo de criação dialógica entre o homem e a máquina, mas também, de que a língua é como uma entidade viva, uma linguagem fluida, em constante transformação, permeável a influências, sensível a forças sociais e à evolução tecnológica.

Em Cronofagia (www.paleotv.com.br/cronofagia) , de Jurandir Müller e Kiko Goifman , uma paisagem urbana feita de carne ocupa a página central do site. Ao clicar sobre a imagem os visitantes disparam um relógio web. A partir de um determinado número coletivo de cliques são disparadas ações de destruição e desmaterialização da imagem de tal forma que ela se destrua e desapareça completamente. Desta forma o trabalho não só evidencia a possibilidade de se fazer, neste caso destruir, um trabalho coletivamente, como também aponta para a própria idéia de violência, tema em destaque no mundo contemporâneo. Do título do trabalho, Crono(tempo)/fagia(comer), entendemos a proposta dos artistas: colocar em debate não somente a temporalidade do aqui e agora propiciada pela internet e a possibilidade de uma criação coletiva, como também colocar em debate a idéia da passagem do tempo, numa espécie de metáfora neobarroca da morte humana e da própria desmaterialização da obra de arte no mundo contemporâneo.

Em Ouroborus (http://artecno.ucs.br/ouroboros) Diana Domingues explora a convergência entre o orgânico e o artificial. O trabalho oferece quatro situações: memórias, onde podemos ter acesso a textos e informações sobre ritos indígenas e do tema mais geral do trabalho, vila, um ambiente imersivo que nos dá a possibilidade de navegar entre cobras, terrarium, um ambiente que explora questões relacionadas à vida artificial e serpentarium, um trabalho em telerrobótica. A idéia deste último é a de que participantes remotos, conectados ao site, poderiam se deslocar no mesmo espaço físico de cobras vivas ao incorporar o corpo de uma cobra/robô que se encontra em um serpentário e que se acopla a uma webcam e que transmite, em tempo real, imagens de um serpentário. Do título do trabalho (em telerrobótica) IN = nas SNAKES+ cobras e as letras H e R entre parênteses, que permitem que seja lida também a palavra shares (dividir), percebemos o intuito da artista: explorar a idéia de partilha e simbiose entre o orgânico e o artificial. Revela , desta forma, o potencial criativo colocado pelas novas tecnologias e pela WWW: um espaço que tem a possibilidade de fornecer um novo modo de percepção e criação estética.


Trabalho em telerrobótica de Diana Domingues.


É dentro desta perspectiva que se desenharam os projetos da seção de net arte da XXV Bienal de São Paulo, dos mais simples aos mais sofisticados. Como indagadores que são, cada artista procurou no interior da internet suas possibilidades poéticas e criativas. A eles não interessou o mundo visível da metrópole contemporânea, mas este mundo invisível, imatérico, virtual da WWW. Para estes artistas o espaço telemático, como nós, parece sonhar. Também aí existem encruzilhadas, nas quais sinais cintilam através do tráfico, também aí se inscrevem analogias e acontecimentos coletivos, também aí se articulam ruídos, sinais e presenças inesperadas. E são estes sinais, estes acontecimentos coletivos e analogias diversas que os trabalhos destes artistas tentam captar, deixando para nós a sensação de que o mundo e o universo que nos rodeia é muito mais amplo do que nos parece ser.


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Priscila Arantes é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade Anhembi Morumbi e em cursos de Pós-Graduação. Dedica-se à pesquisa de assuntos ligados à história da arte, artes plásticas, estética e arte digital. É formada em filosofia pela USP e vem escrevendo artigos na área de arte e novas tecnologias. Atualmente desenvolve doutorado em arte digital no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC SP. Email: priaran@terra.com.br

BIBLIOGRAFIA

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