Os
recursos da poesia, nas infinitas tentativas de entrecruzar linguagens,
são inesgotáveis. O legado poético da humanidade
é exemplo inconteste disso: a cada poeta que conhecemos muitas
surpresas agradáveis surgem, graças às inúmeras
estratégias utilizadas, dentre as quais a migração
que a poesia vem fazendo do meio impresso para o eletrônico.
É uma dessas surpresas agradáveis que pretendo apresentar:
a obra impressa e eletrônica do poeta visual norte-americano David
Daniels, com a qual tive o primeiro contato através do grupo
eletrônico Webartery em 31 de maio de 2001, ocasião em
que Jim Andrews fez uma bela apresentação de The Gates
of Paradise - www.thegatesofparadise.com.
David foi recebido com grande admiração pelos participantes
do Webartery: muitos correios eletrônicos teceram comentários
elogiosos sobre a sua poesia, especialmente quanto ao fato de se apresentar
na forma impressa e na eletrônica.
O título do seu primeiro livro é significativo: The Gates
of Paradise (As portas do Paraíso), mas que não é
um texto religioso, mesmo contendo na capa a foto do autor em frente
a um grande templo. É, na verdade, a construção
de um mundo-em-palavras que nos oferece imagens e palavras num diálogo
rico de linguagens, pois David faz uma espécie de grafismo por
meio do computador. Trata-se de trabalho artesanal, inteligente, de
muita paciência, a construir imagens com palavras e espaços
em branco.
É a correta negociação do poeta com a tecnologia
computacional: David afirma que, graças ao computador, é
que ele pôde construir The Gates of Paradise. O computador representa
a tecnologia que se adapta à sua necessidade de comunicação
poética.
Folhear The Gates of Paradise é uma aventura do olhar e depois
da leitura. O olhar nos oferece formas e a leitura nos traz os desvelamentos
do significado das imagens e das palavras. É uma obra para ler
e ver de perto e de longe, já que palavras se fazem pinturas
e pinturas se fazem palavras, como costuma afirmar o poeta: "making
works out of pictures and pictures out of words". E isso não
é simples retórica, nem apenas jogo de palavras. É
a construção da sua poesia.
David Daniels inicialmente fez obra impressa, depois a adaptou para
a web. Há diferenças significativas entre ambas: a obra
eletrônica, sob o título principal de The Gates of Paradise
(iniciada em 1984 e publicada em 2000) se ramifica em Years (publicada
em 2002) e Humans (obra em construção na web desde 2002),
contém uma fortuna crítica, entrevistas e uma série
de outros "gates" que o poeta tratou de forma singular; há
dois tipos de obras impressas, uma edição luxuosa, especialmente
dedicada a colecionadores, e outra que se encontra à venda em
livrarias.
Acessar The Gates of Paradise é uma outra aventura e o ler e
o ver de perto e de estarão intimamente ligados ao "zoom".
Mas é claro que não é só essa a diferença
da obra eletrônica: podemos ler as opiniões sobre a poesia
de David, conhecê-lo melhor através de suas entrevistas,
sentir a sua aceitação por outros poetas e estudiosos.
Em sua obra principal, que é o The Gates of Paradise (As Portas
do Paraíso), cada poema é um "gate", que se
completa com os "gates", que são os "links"
para os sítios dos seus amigos. E os "gates" dos amigos
é uma obra "in progress", em permanente construção,
o que demonstra que David Daniels faz cada vez mais amigos. Cada "link"
tornou-se uma extensão da sua obra, não um anexo, como
é costume acontecer em sítios.
E é interessante observar que os seus amigos são pessoas
e, também, as suas leituras prediletas. Assim, encontramos "gates"
de W. Somerset Maughan, Guillaume Appolinaire, Símias de Rodes,
Teócrito, dentre outros.
A outra obra que foi impressa é Years, uma autobiografia em poesia
visual. O conteúdo e a forma, antes essencialmente formados de
letras em cor preta, nessa obra adquiriu cores e formatos diferentes.
E os correios eletrônicos, como os que ele manteve contato com
Kenneth Goldsmith, um dos integrantes da Ubu Web que muito colaborou
para a publicação de The Gates, é outro exemplo
de como assumir a visualidade do mundo que nos rodeia e fazer dela uma
poesia.
Humans é a sua obra em andamento, na qual David constrói
a biografia poética visual dos seus amigos de todos os tempos
e de todos os lugares, com base numa entrevista padronizada, pois todas
as respostas devem ter um máximo de dez palavras. Pessoas, imagens,
palavras e sons formam a nova experiência poética do nosso
entrevistado. Uma nova configuração começa a se
delinear: o poeta já começa a incluir sons em seus poemas,
e trabalha com uma série de palavras-imagens com cores diferentes.
É preciso ver a poesia de David Daniels de dois modos: o significado
dos signos lingüísticos de que cada poema é constituído,
e pelo rápido olhar as formas que a sua obra nos oferece em cada
poema. Ou seja, um olhar para a palavra e outro para a imagem que se
forma com e por meio delas.
O agradável da leitura está nas descobertas: a da forma
e a do conteúdo. No primeiro olhar, vemos imagens. No segundo,
imagens que se formam de letras. Um terceiro olhar mais atento nos oferece
letras em agrupamentos que nem sempre formam palavras. A leitura nos
traz o significado das palavras. Palavras e imagens dizem a mesma coisa?
Não. A riqueza de significados das palavras é complementada
pelas imagens.
Não é somente a forma que encanta o leitor quando vê
a poesia de David Daniels. O terceiro olhar, que é o da procura
de significados, e ele é também surpreendente, oferece
a leitura das primeiras palavras que já nos seduzem a continuar
a leitura.
E isso nos traz duas grandes constatações: ora o texto
é poesia, ora o texto é uma narrativa bastante sintética,
calcada na visualidade e sonoridade das palavras, e também na
evocação que o conjunto poético sugere.
A leitura do sexto poema da parte "1962 Anto I", do livro
Years, é um exemplo do que estamos falando. O primeiro "verso",
se é que posso chamar assim, é composto de quatro repetições
da expressão "my horses". Há uma carga sonora
bastante significativa, sílabas átonas e sílabas
tônicas: my HORses my HORses ... Isso foi a primeira coisa que
me chamou a atenção, pois veio à mente o som e
a imagem de cavalos trotando.
Há, também, um outro elemento que chama a atenção.
O terceiro olhar percorre a página à procura de letras
para formar palavras. É uma espécie de interatividade
visual, pois leva o leitor para os caminhos que o poema construiu. Isso
faz lembrar a escrita sem pontuação do escritor português
José Saramago, que conduz o leitor a construir significados de
acordo com o número de palavras que ele agrupa num conjunto de
textos sem pontuação. Isso é semelhante à
não linearidade do hipertexto e o trajeto que cada (e-)leitor
faz na web por meio dos linques que escolhe.
David Daniels é natural de Newark, Nova Jérsei, e nasceu
em 11 de outubro de 1933. Meu contato com ele tem sido via Internet
e posso dizer que o conheço de algumas fotografias e das idéias
que compartilhamos em língua inglesa. A entrevista que o poeta
concedeu a Regina Célia Pinto e a mim foi extremamente importante
para conhecer a bondade e a alma do homem, do poeta e do artista - https://archive.the-next.eliterature.org/museum-of-the-essential/museu/interviews/david.htm.
Já podemos contar com uma bibliografia significativa sobre o
poeta: os comentários de John Strausbaugh - www.ubu.com/papers/daniels.html
-, um texto do próprio poeta para o Cosign 2002 (Computational
Semiotics for Games and New Media - www.cosignconference.org/cosign2002/papers/Daniels.pdf
-, uma entrevista concedida ao também poeta visual Michael Basinski
- http://www.ubu.com/papers/daniels_interview.html
-, o comentário de Regina Célia Pinto a respeito de sua
participação no poema "SAAD1" - http://www.thegatesofparadise.com/humans/REGINACELIAPINTO_SAADI.pdf,
dentre outros.
A vida em palavras-imagens e/ou em imagens-palavras - assim poderíamos
conceituar, de forma bem geral, a poesia visual de David Daniels, esse
norte-americano que pacientemente produz uma poesia impressa, mas que
está estreitamente vinculada à tecnologia computacional.
Um poeta de hoje, que sabe negociar com a tecnologia aquilo que ela
pode lhe oferecer para produzir uma nova poesia.