Queridos
alunos:
Fomos
à Bienal
e estamos estudando a cidade. Até temos uma expressão:
RCPEU, que quer dizer relação centro-periferia na escala
urbana. E lá fomos ao Centro. Ao centro cultural, onde também
se armava a Feira do Livro e, consequentemente, uma tempestade.
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No
Santander Cultural havia Antonio Berni e seu Juanito falando
alto sobre segregação urbana. Eles são
argentinos, muito próximos de nós, problemas parecidos,
geografia semelhante. Juanito parecia vindo do campo, um índio
jogado contra o concreto. "Juanito pescando" de 1962
mostra peixes e indústria se tocando na fronteira rural/urbano;
"Inundación en el barrio de Juanito" de 1961,
é também explícito: entre rostos resignados
e casas de lixo uma placa se sobressai: Se Venden Terrenos.
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Antonio
Berni
Juanito Pescando
1962
Xilocolagem
194,5 x 145cm
Coleção particular
Os
quadros que olhamos mostravam a cidade, imaginei Buenos Aires, a Boca,
os bairros pobres que o rio invade, onde as pessoas moram porque o campo
não precisa mais do trabalho delas e porque a especulação
imobiliária só lhes permite o acesso a áreas perigosas.
Nesse deslocamento a água leva as esperanças com o lixo
que compõe a cidade. Materialista interpretação,
no sentido dos materiais usados, zinco, tijolo, papelão, que
fazem parte da construção urbana, em um relevo que traz
uma fatia da cidade para o quadro.
Michael
Wesely
Série "Orinoco" 2000
Fotografia
100 x 150 cm
Michael
Wesely refez a viagem do também alemão Alexander von Humboldt
pelos rios da América Latina, fotografando lentamente suas margens.
Se não me engano era o V.I. Lenin que dizia que "acusa-se
a um rio de ser rebelde, mas não se acusam às margens
estáticas de restringir seus movimentos". Pois olha que
a margem se mexia...O registro do movimento das terras propõe
uma geografia muito contemporânea, em evidente mutação.
Humboldt ficou conhecido como "pai da Geografia Moderna",
isto é, da geografia científica, que ordena e alinha fatos
e lugares, classificando-os como ocorrências de um contínuo,
numa progressão com explicação objetiva. Os críticos
dizem que esse inventário servia para organizar a dominação
das terras recém-descobertas. Wesely, sabendo ou não,
cria uma geografia impressionista, bem abstrata, pois não abre
mão de listar o nome dos lugares que originaram as manchas paralelas
de cores difusas que ele diz serem trechos da expedição
de Humboldt ("Der Orinico am Camp Orinoquia Spätnachmittags",
1999). Ele leva a foto do pictórico classificatório ao
abstrato. Demole a taxonomia: não dá para dominar nada
a partir da expedição de Wesely.
Maria
Fernanda Cardoso colecionou tíbias e recuperou a casa de Simon
Bolívar, reinventou o mármore americano. Mármore
mesmo é metamórfico, é calcáreo comprimido
e submetido à pressão, criando aqueles veios escorridos.
O mármore americano é metafórico, é também
calcáreo, ossos de boi serrados, deixando soquetes à mostra,
como uma multidão com punhos levantados, tetricamente soterrados
para servir de decoração na mansão de seu líder.
A
Ana Rita ficou hipnotizada pela boca de Deus. O Lucas, de jaqueta, descobriu
que a Maria Freire inventou o protetor de tela. O Marcos interessado.
A Caroliny indignada com a arte abstrata, para que serve o abstrato?
A Ananda ficou de mostrar o quadro surrealista do pai. O mediador chamava-se
André e era contra a Ramona, que vendia o corpo como um pedaço
de carne. Deus é boca é verbo e não está
na verborragia. Tudo é mais do que parece.
Cimeuqueroir
Queridos
colegas,
Daqui de onde olho, a Bienal é uma escola pública, gratuita
e de qualidade. O público pré-determinado da Bienal são
os alunos, centenas de milhares. O evento tem a felicidade de vir acompanhado
do charme da cultura e da força da publicidade. Tem o bom timing
de vir no fim do ano letivo, quando já construímos muito
com os alunos, aí vamos lá e concretizamos, revisamos,
testamos, reinterpretamos, aplicamos... Tem a beleza de ter um caráter
programático, político, investigando as origens, propondo
a unidade latinoamericana. Tem entrada franca, horário ampliado,
transporte gratuito, preparação para professores, material
para os alunos. E como boa escola, não responde, pergunta.
A
Bienal é tri-boa para exercitar, ensinar e discutir a geografia.
Isso só não está mais explícito na curadoria
porque a geografia é desconhecida, apesar de ser ensinada diariamente
à milhões de alunos brasileiros. "Arqueologias contemporâneas"
são geografia. Expedição (de antropólogos...)
é trabalho de campo. Também os mediadores tendem a discutir
a forma da obra, a metalinguagem, mais que os significados trabalhados
pelos artistas.
Os
lugares que acolhem a Bienal eram originalmente um porto, a alfândega,
o correio, o banco e uma usina de força. Elementos da geografia
das sinapses (Brunet), dos intercâmbios. Hoje símbolos
e informações são enviados por artistas de vários
lugares do mundo e recebidos por porto-alegrenses. O que vamos fazer
com essa informação? Ela reverbera na recepção,
é por isso que proponho meu texto, leitura do que vi, que vi
com olhos de geógrafa, o espaço, o território,
a paisagem urbana, as relações centro-periferia (até
nas mostras, os icônicos no centro e os novos junto ao Guaíba).
Adriana
Dorfman
02/11/2003