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No
princípio era bolinha de gude. Bilosca veio depois, quando o polegar
já se entre-gara a outros dentes.
Embora substantivo simples, a sua redondez exige justaposição
com búlica, vocábulo que ensina ao signo vazio.
Até os anos 60, acomodar a bilosca na letra u de búlica
era questão obrigatória nas provas de caligrafia*, o que
explica a sobrevivência do acento agudo que, à época,
funcionava como ponto de mira. Difícil a bilosca não resvalar
no b ou no l, desapare-cendo na nota vermelha.
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Cf. GARCIA, Paschoal Cunha. Subsídios para uma história
do ensino de caligrafia no Brasil: dos jesuítas ao século
XX. Rio de Janeiro : INL/Dédalo, 1972.
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Quem
leia saiba, linha ilude algum dentro. Pára em meio, recolhe o ar,
o arco, o caracol. No contorno da maçã, disfarça
a mão armada. Desvio longo, até onde?
Linha acode como apóstrofe ao espelho.
Lápis pássaro deslimita. Será varal ou meridiano?
Rubrica sobre a água ou giz na calçada?
Linha turista quando a pele é o único disfarce.
Rabiscar esconde armadilhas no mapa. Olho não descansa até
desmontar a lâmina.
Linha é leque ou libelo?
Em sendo uma máquina simples, linha acomoda do horizonte a medida,
da ponte as aspas, da esquina o adeus, do caderno o entorno, do gesto
a infância.
A garatuja basta, inteira paisagem.
O que é a linha senão um capricho do tempo: bifurcações
sem sentido até que se realize o arabesco.
Linha erra: onde se lê autor, leia-se personagem.
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Excertos de anotações apócrifas realizadas durante
as aulas ministradas por Paul Klee na Bauhaus, Weimar, em 1924. Manuscritas
em inglês, as 149 páginas do original (em papel-linho branco,
33x22cm) incluem, além do texto, 26 desenhos a bico-de-pena,
quinze deles com o autógrafo ST., o que levou alguns estudiosos
ao equívoco de atribuir a autoria das notas ao desenhista romeno
Saul Steinberg, à época com apenas dez anos. Traduzimos
aqui fragmentos das páginas 11, 14, 40, 79 e 132.
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A
Clarice
Uma
cobra mordendo a própria cauda, um caracol com abismo na entrada,
uma bola só-cascas, voando entre a mão e o acaso.
Às vezes se finge de mar, apenas para fazer blague da eternidade.
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Fóssil
da infância, velocípede existe em fuga para o vermelho.
De miniatura viagem, velocípede açula um Ulisses dentro.
Com sua frágil lição da queda, velocípede
ensina o silêncio da festa.
Deus ex-machina do menino, velocípede está em fazer do verbo
bicicleta.
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Texto
Poético: Fernando Fiorese © 2003
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Ilustrações:
Regina Célia Pinto
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