IMAGENS DO RIO: DIÁRIO MÍNIMO (Sobre duas rodas)
             Regina Célia Pinto


"Jour après jour sans exception, je vais consigner les événements de ma vie par ordre chronologique.— Chaque jour, le compte rendu de la veille: un miroir des événements, un examen de conscience, la détermination des principes premiers de mon existence, un projet pour le lendemain." [MALINOWSKI, Bronislaw (1985). Journal d'ethnographe. Paris, Éditions du Sèuil.]

"A cidade real reflete as dificuldades do fazer arte e as circunstâncias contraditórias do mundo em que se faz." [ARGAN, Giulio Carlo (1993). A história da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes.]

— "A formação de uma nova sensibilidade, uma completa reeducação dos sentidos do citadino, acompanha o equacionamento da sociedade." [BRESCIANI, Maria Stella (1994). A cidade das multidões, a cidade aterrorizada, In: Robert Moses Pechman (org). Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ.}

Introdução:

Metáfora meio que inventada ... ("a mentira não está no discurso, mas nas coisas.")


Conta-se que na última noite de Ano Novo, um adivinho, questionado sobre a identidade desta nossa São Sebastião do Rio de Janeiro, dissera: — Vejo duas cidades: uma de terra, outra de água.
Imagem do Rio, eu também, decido esclarecer este oráculo pós-moderno. Então, acompanhada de minha câmera, em algumas manhãs saio por aí, etnógrafa —artista—ciclista ( "contra o vento!" ), recolhendo fragmentos, imagens e sentimentos, num trabalho de campo metodologicamente malinowskiano.
De tarde registro neste diário mínimo, metodicamente, tudo o que vi e senti pela manhã. Ensaio relatar minhas vivências numa crônica assim meio científica, misto de balanço de vida e exame de consciência, tentativa de reencontrar aquela meio perdida tensão que me impulsionava para adiante, sempre mais adiante, mais adiante!


Sábado, 22 - 07 - 1995


Manhã de inverno. Céu de azul claro lavado pela chuvarada que caiu ontem. As águas da lagoa refletem montanhas e prédios e nuvens. Águas e reflexos e espelhos. A cidade se contempla. Relembro Narciso e Eco . Mudo o itinerário. Dirijo-me ao Jardim Botânico.

Fotografias. Água e terra. Entre o arvoredo observo as duas esculturas que estiveram tanto tempo separadas:


—Narciso, à moda de Caetano, ainda continuará a "achar feio o que não é espelho ?"


—Eco morrerá eternamente de amor-or-or-or-or-or ?

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Tanto Eco como Narciso foram criação de Mestre Valentim, que contribuiu para o embelezamento da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII. Ambas têm inspiração na escultura grega. Conta o escritor Antonio Callado que Eco e Narciso estiveram até 1856 no alto do Chafariz das Marrecas, quando este foi destruído. Desde então foram recolhidos , junto com algumas das marrecas, ao Jardim Botânico (RJ). Foi do escritor a idéia para reunir os dois mitos novamente. Para isso foram providenciadas réplicas da estátuas, visto que os originais estavam em mau estado de conservação. Atualmente eles se encontram em destaque no Jardim Botânico (RJ), bem no alto de um chafariz semelhante ao antigo de onde foram retirados.


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Desafio a mim mesma. Como estabelecer uma relação entre água, terra, Narciso, Eco e o Rio de Janeiro ?
Água, terra, esculturas. Um fiozinho de neon azul dolorido se instala de repente. Saudade. Muita. Da mestra, da artista, da ouso-dizer amiga Celeida. Celeida Tostes, a escultora carioca. Onde estarão agora sua energia e luz ? Quem sabe no Parque Lage ? Pedalo até lá. Quando estou quase chegando, decido subir primeiro a Maria Angélica. De uns tempos para cá peguei essa mania —a de passar de vez em quando pelo prédio onde a artista morou. Faço um jogo comigo mesma. Imagino que ela está lá dentro e que se eu tocar a campainha vai atender com o seu jeito descontraído / tímido e que vamos conversar e que ela vai me mostrar mais uma vez como olhar as flores ou então me revelar seus planos para o futuro. Um futuro que já está aqui e no qual os planos se transformaram em sonhos. Realidade. Dura às vezes. Quase sempre ? ...
Sigo para o Parque Lage. Volto no tempo.


Parque Lage, 1990


Entro na Escola de Artes Visuais. É a exposição "Tempo de Trabalho". Emocionante retrospectiva da artista Celeida Tostes ( que ainda não conheço pessoalmente). Fotografo a muito especial "Aldeia Funarius Rufus".
É formada por casas de joão-de-barro que foram dispostas sobre uma superfície plana e seguem a orientação de uma espiral ou das primeiras curvas que a formam.
As quarenta e cinco unidades que formam o conjunto possuem uma abertura, que parecem a entrada de uma pequena caverna. Algumas destas fendas deixam perceber a existência de objetos que me parecem ovos. Outras estão vazias.


Oficina Integrada De Cerâmica , UFRJ, 1992

Celeida me conta: "—A aldeia foi uma lembrança da fazenda. Lá tínhamos uma vida muito próxima da Natureza. Eu via o joão-de-barro, macho e fêmea construindo juntos sua casa, criando seus filhotes. Ela surgiu quando um amigo geólogo, ao voltar de um trabalho em Macuco, trouxe de presente para mim uma casa de joão-de-barro. Olhei para a casa e ela me lembrou uma caverna, um útero. Comecei a fazer interferências.
Estabeleci uma relação com uma aldeia Xavante, da beira do Rio das Mortes, construí uma aldeia com 45 casas desse pássaro. Ora, quatro e cinco são nove, volta ao mesmo sentido, o nove ou o seis. A casa de joão-de-barro ‚ o início de uma espiral. O seis é a idéia do ovo. O lugar de iniciação, a casa de iniciação da aldeia Xavante, corresponde ao lugar do ovo, é um centro. Então esse espaço da espiral, é o espaço de vida."


Domingo, 23 - 07 - 1995


Percorro um de meus espaços de vida — num domingo ensolarado constato que a orla do Rio é um espaço pulsante e vivo — onde as pessoas se encontram. A convivência é algo próprio do ser humano.
Artista / atleta, inauguro a nova ciclovia do Forte e termino indo até o Leme. Posso ver duas cidades: a dos arranha-céus que narcisicamente observam o mar — espelho defronte a eles e a do Morro Chapéu Mangueira, que também contempla o mar e do qual Celeida me contava histórias: de Dona Henriqueta, de Dona Augustinha, que conheci na universidade, da oficina no Morro — surgida depois de um já famoso escorregão no barro.
"A Associação Amigos do Chapéu Mangueira é uma comunidade de Zona Sul que se foi formando, pouco a pouco, na parte alta do bairro do Leme. Limita com a Zona Militar. Seus muitos caminhos podem conduzir, do alto do morro, ao extremo do calçadão do Leme.
Casas esparsas foram se multiplicando até ocuparem uma área considerável, ao ponto de se desdobrarem nessa área duas comunidades: à esquerda de quem sobe a Ladeira Ari Barroso, fica o morro da Babilônia; à direita, o Morro da Associação amigos do Chapéu Mangueira. Esse desenvolvimento deu-se em torno de 60 anos. Já em 1927 consta um óbito dando o local como referência de moradia.
A média de idade dos moradores varia entre 20 e 40 anos e a população é de cerca de 2300 habitantes.
A comunidade trabalha nas áreas comuns em sistema de mutirão. Também assim foram realizados o Galpão de Arte,
um forno de lenha para cerâmica, a recuperação da escola (maternal e jardim) e a construção de um Posto Médico, incluindo Clínica Odontológica com proposta de amplo atendimento às crianças.
A área onde se expandiu o Chapéu Mangueira tem ainda boa presença de verde com flores e plantas nativas e dispõe de espaço aberto com terra." Tostes (1986)

A MUSIQUINHA FUNK INSISTE NO MEU "WALKMAN" . A SIMPLICIDADE DAS RIMAS OU A VOZ DO CANTOR, DE UMA CERTA FORMA, ME EMOCIONAM.

Estabeleço vínculos. Agora são Celeida e Dona Henriqueta que dançam numa festa junina no morro. É Dona Henriqueta que diz; — "Isso é que é vida".
A tal felicidade: "nonada, asa de borboleta".

Posto Seis, Verão / 1966


Eram os homens puxando o arrastão. A praia toda correu para ver. Prata que brilhava ao sol ! Tão lindo que chegava a doer os olhos. Alguns conseguiam se livrar. Estes batiam nas minhas pernas, na ânsia de liberdade.
Pulavam cheios de vida e medo ! Depois, jaziam na areia. A vida se fora. Os homens trocavam a vida por dinheiro.
Só eu estava triste. Pensava na beleza do momento que passara, na inutilidade de lutar contra a morte, na beleza prateada que fora destruída.
As ondas tratavam de carregar os restos. O que antes cortava esguiamente a água, agora se deixava carregar pesadamente.
A vida se fora ! A vida se fora ! Se fora ! Se fora ! Ora ! Ora ! Ora !
Eco? Narciso?


Hospital Samaritano (RJ), 27 - 12 - 1994


Vou até Celeida que continua resistindo valentemente à ferocidade da doença. Apenas entro no quarto repleto de flores, dou-lhe um beijo e saio. Sou recebida com muito carinho mas as visitas estão proibidas e, além disso, não teria coragem de ficar e conversar. Temo revelar minha imensa tristeza. Sinto que é uma despedida.
Poucos dias depois, antes de morrer, a artista revelaria a uma amiga : "—É muito duro estar lúcida numa hora como essa !"


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Então lembro mais uma vez o "Quem somos?, De onde viemos?, Para onde vamos?" Frágil é ser humano, finíssima linha esticada entre a vida e a morte.
Memórias. Um amigo me conta a sua concepção de morte: imagine um mundo que é uma linha reta. O ser que o habita só conhece uma dimensão: o comprimento. Sua maior aventura é caminhar de uma ponta a outra deste fio. Se, uma força qualquer o põe num mundo que é um plano, tudo é novidade para ele. Do mesmo modo nós, que experimentamos diariamente a tridimensionalidade, somos surpreendidos quando a morte nos torna compreensível uma outra dimensão.
Desta narrativa surgiu-me a idéia de morte como enigma a ser decifrado. Muito mais acolhedora do que aquela materialista que comumente me desesperava e que a trata como limite ou vazio.
"Nas concepções religiosas da vida, a morte sempre constitui uma experência limite, um mistério último, aquela dimensão de finitude que impõe ao ser uma necessidade de sentido, o anseio de sua perpetuação, o desejo de se reencontrar com a natureza e com os valores do divino." Subirats (1989)
A arte tem sempre como um de seus sentidos o anseio de perpetuação provocado pela fragilidade e transitoriedade do ser humano. A arte de Celeida, sem dúvida alguma também o tem.
Contudo, a obra de um artista pode ser observada de vários ângulos e uma decifração não anula outra. Somos todos abrangentes e complexos. Compreender realmente a arte implica em pura atividade de tecer os múltiplos fios que a constituem, na tentativa de obter uma urdidura capaz de ser aceita como realidade.
Henri Stahl, na roda de conversa "Revivendo Celeida", que tive ocasião de promover na Livraria Boucherie Letras & Livros (RJ), em maio de 95, afirmou estar sua obra estreitamente ligada à idéia de morte. Para este Autor na vida da artista sempre esteve presente esta sombra sufocante,em virtude da morte prematura de alguns entes queridos. Assim, a experiência / performance intitulada "Passagem" (1979) e realizada pouco antes de Celeida ter conhecimento da doença que a levaria para uma outra dimensão (03 - 01 - 95) se relacionaria com todos estes fatos e também intuitivamente com o seu próprio falecimento.
Concordo com ele mas faço algumas ponderações visto que existem muitos tipos de morte, entre eles o "morrer de amor". Assim, considero que a idéia de morte presente na obra de Celeida estava completamente amalgamada ao seu contrário — a idéia de vida, de nascimento ou renascimento; de sua condição de mulher, numa época onde ocorriam profundas mudanças nos papéis dos gêneros masculino e feminino .
A mente humana tem realizado tramas mais ou menos complexas para explicar ou suavizar a idéia de morte. Todavia, apesar de toda a sua realidade de destino único e comum a todos os viventes, o sentido dela continua sendo um mistério cujo conhecimento é privilégio dos que já partiram.
Sendo que a maior parte do tempo passamos tão preocupados com o medo de morrer (isto é inevitável diante da violência que atinge as grandes cidades modernas, entre elas o Rio de Janeiro) que esquecemos de viver, isto é, nos condenamos à morte estando vivos. E aí mais uma vez aprendemos com Celeida, esta que vivia intensa e generosamente, mesmo condenada à morte precocemente, por isso sua obra geminiana respira vitalidade e finitude; desassombro e medo: mais do que nunca é preciso viver hoje.


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Sábado, 29 - 07 - 95


Amanheço com o sol no Arpoador. Apesar de inverno, um dia esfuziante. Água clara, muitos peixes. Nado. Estou cheia de coragem. Neste momento me sinto parte do Universo. O contato com a Natureza me faz esquecer temporariamente que sou uma especialista em castelos de areia. E mais uma vez me faço a pergunta que a maioria dos artistas cariocas se faz atualmente, com insistência:

— Qual o sentido de se fazer Arte, hoje, no Rio de Janeiro?


Sento na areia quente. Na claridade da manhã surge estranha imagem: uma vendedora de "kangas" extremamente coloridas. São tantas as "kangas" com que a mulher se envolve que só se vê o seu rosto e um chapéu de palha. É um quadro vivo que caminha em minha direção.
Bem, pode ser que eu tenha estado esquecendo que a arte é surpreendente e aparece nos lugares mais inesperados. Então, lembro também, porque sempre as freqüento, das casas de sucos que espalham suas delícias pela cidade e onde podemos observar com interesse a estética divertida da arrumação feita com laranjas, morangos, abacaxis, tangerinas, mangas, melões, abacates, ...
Arte é a minha vida, dizia Celeida.

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Bourdieu (1989) faz considerações sobre o poder simbólico e estabelece comparações entre estética e sociologia para explicar o que é arte, o que é artista. Ele mostra como no final do século passado surge a pintura moderna, contrária à instituição acadêmica e a convencional, comenta o desabamento das estruturas sociais do aparelho acadêmico (ateliers, salões, etc) e das estruturas mentais que lhe estavam associadas. Isto, segundo ele, foi consequência de um trabalho de conversão coletiva, necessário para criar o mundo novo, de que nosso olhar é produto. O Autor sugere que o excesso de produtores de arte fora e depois contra a instituição da Academia , que detinha todo o capital simbólico, ocasionou condições propícias para favorecer o sucesso do modo de pensar e do estilo de vida característicos dos artistas modernos.
Sobre a crise em que se encontra a Arte hoje, pelo menos no Rio de Janeiro, muito os artistas têm discutido, seja entre eles mesmos, oficiosamente; seja em reuniões instituídas oficialmente. Sem concluir efetivamente nada.
Constato que coincidentemente com o texto de Bourdieu há hoje um número excessivo de produtores de arte em nossa cidade. Quanto a este "novo olhar" que é dito produto daquele mundo novo estudado pelo sociólogo considero, embora mais de um século depois, ainda privilégio de poucos, pelo menos no Brasil. Pelo contacto com pessoas de diferentes níveis sociais tenho percebido que a maioria entende, gosta e dá valor apenas à pintura ou à arte narrativa, chegando no máximo a aceitar o impressionismo. Contudo, o que as instituições oficiais valorizam simbolicamente é a arte contemporânea, que não corresponde absolutamente ao gosto da maioria. Há então um grande desnível entre público e instituição. E, mesmo dentro da arte contemporânea nem sempre é claro, pelo menos para mim que penso possuir um olhar de vanguarda, perceber quais são os critérios para que alguém diga isto é arte ou este é um artista. A esse respeito, Hans Haacke (1995), artista alemão que vive em New York, narra curiosa situação ocorrida num simpósio entre Philippe de Montebello, diretor do Metropolitan e o crítico Michel Brenson do New York Times . Este último havia escrito um artigo onde propunha repensar a questão da avaliação dos critérios de qualidade a propósito de obras produzidas por artistas que até então estavam fora do circuito tradicional da cultura ocidental. O esteta do Metropolitan não abdicou absolutamente de sua idéia de que devia haver um critério absoluto. Brenson perdeu seu emprego após este fato.
No caso especial do Rio de Janeiro, é preocupante como a algumas tendências artísticas, têm sido sistematicamente negado o seu valor simbólico, sendo então excluídas de qualquer exposição mais importante. Realmente aqui tudo está muito confuso, às vezes me parecendo até uma Academia às avessas - não se atribui valor ao que é bom dentro de um universo, mas ao que é melhor dentro de um determinado grupo.
A verdade é que ao artista que só possui capital simbólico (às vezes nem isso!) e precisa de poder econômico para sustentar toda a roda-viva (mídia & Cia Ltda) necessária para tornar sua obra conhecida e ansiada pelo público, resta recorrer ao mecenato e aos patrocínios que além de difíceis de serem conseguidos introduzem uma forma sutil de dominação porque têm a cumplicidade daqueles que se submetem a ela.
Ajudaria muito se o Estado percebesse que tanto como a Ciência a Arte precisa de seu patrocínio efetivo e respeito para sobreviver.
A explicação que encontro para esses desencontros, sugerida mais uma vez por Bourdieu (1989) , é a de estarmos em meio a um processo histórico no decurso do qual estejam se estabelecendo condições sociais capazes de dar origem a uma nova estética que torne possível um novo campo de produção relativamente autônomo e muito mais eficiente que o atual. Neste caso estou considerando como campo de produção não só os artistas como também os críticos, curadores, mídia, etc.
Se é assim, porque o futuro não pode ser hoje? Tenho certeza que algumas dessas situações ambíguas poderiam ser esclarecidas, se todos se decidissem a isso.
Navegar é preciso , sonhar também é preciso!


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Pedalando no real
Volto para casa. Na Vieira Souto, um grupo de rapazes atravessa correndo na frente dos carros e da minha bicicleta. Os carros buzinam e freiam. Os rapazes fingem utilizar metralhadoras contra os carros. Sinto medo.
Revejo mentalmente as imagens da televisão que correram mundo. "Arrastão". Violência e criatividade. Sem querer assobio o "só quero é ser feliz... feliz, feliz, feliz, feliz"...
Eco: Pá rá rá rá rá , pá rá rá rá rá rá !
Chego finalmente ao prédio onde moro - grades. Não toco a campainha. Assobio para chamar a atenção do porteiro. De alguma forma isto me faz sentir mais livre e com menos medo.
(Racionalizo: O fato é que na cidade moderna, o valor do indivíduo cada vez se reduz mais. A cidade que anteriormente era o lugar da segurança, torna-se o lugar do desespero, da solidão, da luta pela sobrevivência. Por isso, Celeida construiu um gigantesco muro de estrume.)
A artista convidou todos, sem exclusão de camada social, para um banquete ritual, para o comer junto, para o trabalhar junto. "O Muro", ao mesmo tempo que impedia a passagem e denunciava a situação angustiante da cidade moderna, aumentava o espaço social de cada um pelo fato de ter sido construído ritualmente, de mutirão. Ele representa bem o aspecto tribal da arte de Celeida, sendo que o fenômeno do tribalismo nas sociedades contemporâneas vem sendo estudado pelos sociólogos, entre eles Michel Maffesolli (1987) , como uma possível resposta à situação de perda e solidão vivida pelo ser humano atualmente nas grandes cidades, onde a cultura de massa e o individualismo são dominantes.


Domingo, 30 - 07 - 1995


Saio cedo de casa. Tenho um projeto que me entusiasma: fotografar muros brancos e buracos negros, modesta tentativa estética de decifração do tempo em que vivo, inspirada por Celeida e pelo texto de Deleuze e Guattari (1980).
Faço peregrinações pelas ruas vizinhas da Lagoa. No alto da Baroneza de Poconé encontro magníficos muros e buracos. Também em Ipanema e na Pedra do Arpoador. Começo a diversificar o conceito de muro ...


Termino na praia onde após alguns mergulhos, constato mais uma vez o meu privilégio de morar na zona sul da "melhor cidade da América do Sul" e poder desfrutar desse inverno e dessa cultura tropicais.
Antes de voltar para casa, faço um castelo de areia e o fotografo antes de ser destruído pelas ondas. Uma pequena garantia de que suas torres esguias ficarão para sempre.

Segunda- feira, 31 - 07 - 1995


A tarde passo toda preparando "rostos". É que revelei as fotos da véspera pela manhã. Coloco as imagens no computador, misturo detalhes, faço a impressão sobre a tela preparada com acrílico ou sobre o papel argilado. Em seguida dou volume e endureço com cera de abelha e pigmento (encáustica). Ao secar a cera crio relevos com uma lâmina. Estética legitimamente teckné. O aspecto final é completamente inesperado e, quem não sabe, nem imagina que foi utilizado o computador.
Estou feliz, feliz, feliz...
Trabalho no meu mais novo projeto - um museu do homem na virada do século:
Mistura de "Asa de Borboleta"
e "Pinguim na Arrebentação"

CORTA!
"Acreditamos que na criação de um novo estilo esconde-se a única e sublime possibilidade de tornar a vida suportável."


Domingo, 13 / 08 / 1995


Em alguns domingos gosto de olhar a chamada "Feira Hippie" de Ipanema, na Praça General Osório. Misturo-me aos turistas e observo. Hoje fui de bicicleta. E, preguiçosa demais para prendê-la a um poste, passeava entre as barracas, conduzindo-a desmontada. Parei para observar umas pinturas. A moça, com uma câmera fotográfica bateu no meu ombro e pediu para tirar uma foto para uma reportagem sobre Ipanema que sairia na revista Manchete . Consenti. Depois desse fato, se ainda me restavam dúvidas, confirmei:
—Sou uma imagem do Rio.
E, contraditoriamente como a cidade:

ECO NARCISO ECO NARCISO ECO NARCISO ECO NARCISO ECO
VIVENDO JUNTOS NUM DESACORDO ÍNTIMO

Um projeto "argiloso"


"... mão que trabalha tem necessidade da exata mistura da terra e água para bem compreender o que é uma mistura capaz de forma, uma substância capaz de vida."
Como formar uma substância capaz de vida com estas vivências que reuni e assim clarear o enigma da água, da terra e desta minha mui querida sem porquê São Sebastião do Rio de Janeiro?


"Tal como o historiador que recolhe sua história na história" , no sábado 19 de agosto / 95 fujo na hora do almoço, do curso de dia inteiro sobre a Internet que faço na PUC-RJ para visitar o "Triângulo Celeida Tostes", parte do projeto "Esculturas Urbanas", desenvolvido pela Secretaria Municipal de Cultura e que seria inaugurado às 11:00 no Parque da Cidade / Gávea, RJ. Chegando lá atrasada, fim de festa! Perdi os discursos, se é que eles aconteceram. Vejo o que gostaria de ver sempre em todos os parques e recantos de nossa cidade: crianças, argila, oficinas! Dona Augustinha e Katia Gorini , peritas na arte de misturar terra e água, "chefiam" a confecção das pequenas peças de argila que aos poucos vão virando oferendas junto aos trabalhos da artista.
Simples e sincera homenagem que sei que a emocionaria muito.
Logicamente reparo na beleza do conjunto de esculturas. Fotografias. Fico satisfeita de ver o Estado assumir seu papel de provedor da Arte.


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Minha satisfação duraria exatamente até 03-01-96, quando por ocasião do aniversário do falecimento da artista decidi encontrá-la simbolicamente no Parque da Cidade. Tipo matar as saudades. Mas, o jardim de esculturas estava devastado! Capim alto. Folhas espalhando-se por todo lado. Uma touceira de lama ao redor de cada escultura. Desolação. Porém o pior de tudo havia acontecido com os bastões : dois deles estavam caídos e quebrados, deixando perceber que eram ocos e revelar que com sua estrutura de jornal fora um erro terem sido colocados ao ar livre . Fotografei tudo, pensando em enviar para os jornais e tornar público o abandono. Um barulhinho no capim e uma pequenina rã pula sobre o bastão caído próximo do pequeno córrego alienado e rumorejante que passa por ali. O pequenino animal fica me fitando. Tento fotografá-lo mas não tenho uma lente apropriada. Misticamente penso (pois relembro da prova que a artista fez para professor titular da UFRJ e do marimbondo que insistiu em ficar pousado na tela enquanto ela explicava a pesquisa realizada na oficina sobre esses insetos e suas construções de argila) , seria um aviso de Celeida? Um dicionário de símbolos me diz que a rã representa a transição entre os elementos terra e água e que este animal foi um dos principais seres associados à idéia de criação e ressurreição.
"Os sonhos que viveram em uma alma continuam a viver em suas obras."


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Posso perceber claramente a força com que a arte de Celeida se integra com a Natureza. Isso porque após a morte da mãe, com um ano de idade, foi levada para a Fazenda de Campo Alegre, no interior do estado do Rio de Janeiro. Lá, nadando no açude, pisando na terra, mexendo no barro, observando as plantas e os animais, a artista aprendeu a torná-la seu destino ou antidestino íntimo e, por causa disso, pôde nos presentear com seus devaneios formais.
Sua arte restitui ininterruptamente a faculdade de maravilhar-nos, seja pela escala inusitada ou pela multiplicidade de formas que se repetem, seja por ser feita com os elementos básicos da vida: água, terra e fogo; unindo assim o natural e o tecnológico. Sabe-se que na "Aldeia Funarius Rufus", por exemplo, a artista experimentou a saliva de diversas pessoas para alcançar a tecnologia do joão-de-barro e, ao mesmo tempo, queimou a casa do pássaro, constatando que a troca não dava certo e tendo então afirmado: _ Cada um na sua! Numa clara demonstração de aceitação da importância da tecnologia humana na cidade atual. Realmente não podemos ignorar tudo de bom que as cidades nos têm trazido. A cidade, o espaço público, embora muitas vezes pareçam o contrário, são e devem continuar sendo territórios de confraternização, de religamento . E para isso muito pode contribuir a tecnologia, se usada na justa medida e em contraponto com a natureza. Para Henri Lefebvre (1994), em nossa hipercompetitiva sociedade regida pelo dinheiro, o nosso olhar é desviado dos elementos dinâmicos, das potencialidades, daquilo em que o quadro atual se pode transformar.
Voltando ao caso específico do Rio de Janeiro, metaforicamente imaginamos duas cidades ocupando o mesmo território: Rio / Eco e Rio / Narciso.
—A primeira, cidade "terra-a-terra" (que ocupa os morros e a periferia), apaixonada pela segunda ou pelo que esta possui, tenta chamar sua atenção, com "arrastões", muitos tiros e violência. É a cidade dos excluídos, cujo desejo é o da igualdade. Parece que, à maneira da ninfa Eco, repete sem cessar : _ Eu estou aqui! Aqui! Aqui! Aqui!
Inútil.
—A segunda, "Narciso / beira-mar", finge nada ouvir. Apenas se contempla eternamente nos muitos espelhos de suas águas, apaixonada por si mesma, por sua Natureza luxuriante e, também, é claro, por seus celulares, Mercedes, Malboros. Seu sonho é a diferença - por isso está sempre em busca do novo. É a cidade que vê crianças dormindo na rua e consegue assim mesmo dormir tranqüilamente. Cerca-se de grades e arma esquemas de segurança cada vez mais sofisticados. Uma cidadela do medo:
"— Uma horda de pobres investindo contra os mais ricos, rompendo barreiras, pilhando, devastando, impondo suas leis. Seria isso o século XXI ?"
É preciso dizer que há gente decente nas duas cidades, porém vive-se um impasse. Tanto é difícil aceitar o olhar indiferente quanto o olhar selvagem pois os dois olhares se desviam dos elementos dinâmicos e das próprias potencialidades. Mas, no dizer dos filósofos, o mito de Narciso pode ter vários sentidos. Então...
"Narciso vai, pois, à fonte secreta, no fundo dos bosques. Só ali sente que é naturalmente duplo; estende os braços, mergulha as mãos na direção de sua própria imagem, fala à sua própria voz. Eco não é uma ninfa distante. Ela vive na cavidade da fonte. Eco está incessantemente com Narciso. Ela é ele. Tem a voz dele. Tem seu rosto. Ele não a ouve num grito. Ouve-a num murmúrio, como o murmúrio de sua voz sedutora, de sua voz de sedutor. Diante das águas Narciso tem a revelação de sua identidade e de sua dualidade..."
A contemplação de Narciso está quase fatalmente ligada a uma esperança. Meditando sobre sua beleza, Narciso medita sobre o seu porvir."
Assim, também o Rio de Janeiro atual pode ser um imenso Narciso ocupado no ato de se pensar. E, onde ele se pensaria melhor do que em sua fonte secreta — esta sua criatividade que surge espontaneamente em cada dobra de esquina ou quebrada de morro. Porém, contraditoriamente ele ainda se esquiva de acreditar nela, menosprezando-a, seja através do pouco caso que faz da Arte, impondo dificuldades e indiferença aos seus processos e produtos, seja por não valorizar a educação artística. O poder da arte, que é muito mais um dos significados da palavra em alemão — ajuda, fica por enquanto esquecido. Enquanto isso a cidade continua dupla.
Foi dobrando, desdobrando, amassando, sovando, misturando a terra e a água, que Celeida descobriu não só o seu caminho, como também sua identidade e sua autenticidade. Uma arte sensível, sensual porque nascida da matéria. Um transbordamento do ser que timidamente se resguardava quando como por exemplo lhe era solicitada uma história de vida. E, ao mesmo tempo, generosamente se oferecia a todos , como quando me emocionou profundamente, indo assistir à minha defesa de dissertação de tese de mestrado , enfraquecida e a dois meses de seu falecimento. Ela só foi porque sabia o quanto isto me era importante.
Contudo, o verdadeiro mundo da artista, aquele que ela procurava guardar nos seus escaninhos mais secretos, escapava-lhe e fluia apenas em seus trabalhos. Este, sem dúvida, um dos motivos de sua excelência: neles ela estava integralmente.
A "Aldeia Funarius Rufus", por exemplo, projetada a partir do urbanismo em espiral de aldeia Xavante situada às margens do Rio das Mortes, mostra como a artista se impressionou com esta vida que se desenvolve em espiral ao lado desta água pesada e sombria, transmitindo estranhos e fúnebres murmúrios. Todo poeta que sonhe à beira de águas como essas, reviverá imagens submersas, reencontrando possivelmente seus mortos.
Celeida provavelmente reencontrou-os e reencontrou-se também mas logo deve ter fixado sua atenção na espiral . Este elemento geométrico que se desdobra de dobra em dobra é um símbolo do percurso do ser humano neste mundo. A existência deve consistir numa série de aumentos, o que corresponde a uma espiral que se desenvolve de dentro para fora. Todos que conheceram a artista devem lembrar da energia com que ela se desdobrava mesmo tendo a sombra da morte ao seu lado.
Uma das múltiplas leituras que se pode fazer da aldeia é a de que ela oferece um plano "argiloso" para este nosso Rio de Janeiro cuja espiral de vida aumenta substancialmente carregada de dor humana. Um aumento às avessas portanto. Provavelmente uma espiral que se desenvolve de fora para dentro. Logo deve ser travada e direcionada no rumo certo. Como fazê-lo?
Bem, afinal o espelho em que o Rio se contempla não é um "rio das mortes", é um oceano onde na maior parte do tempo há muita claridade e luminosidade. E é sob este sol que banha nossa cultura tropical que devemos procurar ver claramente os elementos dinâmicos capazes de introduzir nela a sensibilidade em espiral da aldeia-ovo. Ovo de Colombo, que misturando terra e água, nos proporcione tanto auto-conhecimento quanto aceitação da alteridade, possibilitando então a articulação de políticas de igualdade com as políticas de identidade. Essa esperança pode ser simbolizada na pequenina muiraquitã, a rãzinha esverdeada com que Celeida me presenteou no aniversário de sua morte: tenho muita fé que seja um amuleto anfíbio de criação e ressurreição de nossa cidade, com força capaz de torná-la uma cidade de "argila" .
As esculturas de Narciso e Eco também nos fazem crer na possibilidade de mudança e nos trazem mais esperança pois, assim como na lenda, tendo estado separadas por muito tempo, foram reunidas finalmente no esplendoroso Jardim Botânico.


Dirão os descrentes:
-Vagos indícios da Ursa Maior!


"Na verdade, o destino dos homens está nas suas próprias mãos. É um pouco assim na cidade do Rio de Janeiro, talvez a mais bela do mundo, todos os espaços são possíveis. E é isso que é interessante alcançar: o possível naquilo que parece inevitável."


UM BEIJO PARA CELEIDA QUE SEMPRE ALCANÇOU O IMPOSSÍVEL NAQUILO QUE PARECIA INEVITÁVEL .


Leblon,07/01/1996

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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