O Movimento Neoconcreto (1959-1961)

Regina Célia Pinto
Por volta do final da década de cinqüenta, os cariocas fizeram uma revisão crítica em bloco de sua postura anterior. Denunciaram o excesso de dogmatismo a que tinha levado o concretismo, fazendo arte segundo receitas e que terminava, em vez de integrar a arte na vida, submetendo-a a um esquema de produção de potencial crítico e artístico zero.
Foi lançado então, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil de 23 de março de 1959, o Manifesto Neoconcretista; tendo a I Exposição de Arte Neoconcreta a participação de Lygia Clark, Lygia Pape, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Reynaldo Jardim, Sergio Camargo, Theon Spanudis e Ferreira Gullar. A essa exposição se sucederam outras nas quais participaram outros artistas.

Lygia Pape nos concedeu esse depoimento:

"Nós nos separamos do Grupo Concreto de São Paulo porque eles queriam criar um projeto de dez anos de trabalho para o futuro. O grupo do Rio achou que era racionalismo demais. Nós queríamos trabalhar com a intuição, mais soltos.


Trocávamos muita informação; havia mesmo uma certa impregnação na medida em que um conversava com o outro. O Neoconcreto não surgiu por acaso, também não foi uma coisa que nós elaboramos e depois começamos a trabalhar em cima. Foram as experimentações feitas antes que nos levaram a ele. Depois, o Gullar que era poeta, "copy-desk" do Jornal do Brasil, escrevia muito bem e estudava a teoria da arte, ficou encarregado de redigir um texto que tivesse a ver com o trabalho de todo mundo _ um texto posterior às obras.

Havia uma total liberdade, nada era dogmático. Todo mundo estava disposto a inventar. Não trabalhar só categorias convencionais. Na escultura, a idéia era destruir a base _ fazer um objeto que assim se chamasse mas que pudesse ser posto em qualquer posição. A pintura também não seria mais envolvida por uma moldura, avançaria no espaço. Eu mesma inventei um livro, chamado "Livro da Criação", onde narrava a criação do mundo sem palavras, meio artes plásticas, meio poesia. Esse sentido de invenção, de criação era o que realmente caracterizava o movimento. Naquela época ainda existia o pensamento de um quadro ser uma pintura na parede, para mera contemplação. Não tinha o sentido de participação, de uso de materiais diferentes; então tudo isso deu um sentido muito grande de liberdade. Na época não era fácil, nós tínhamos o mundo em oposição a nós."


Mário Pedrosa observou, com sua habitual acuidade, que a arte neoconcreta era "a pré-história da arte brasileira". Tal definição, que não pode ser entendida em termos literais, sublinha o caráter radical do movimento neoconcreto: pré-histórico na medida que questiona os fundamentos da linguagem artística existente e propõe uma volta ao "começo" da arte.


O Manifesto Neoconcreto, apoiando-se na filosofia de Merleau-Ponty, recuperava o humano, reabilitando o sensível, desqualificado desde Platão e procurando-o fazer fundamento de um conhecimento real. Tinha a intenção de revitalizar o relacionamento do sujeito com seu trabalho.

ICONOGRAFIA

7- Manifesto Neoconcreto
Cf.: Catálogo da exposição Neoconcretismo / 1959-1961, Galeria de Arte Banerj, setembro de 1984.
É conveniente reparar na moderna diagramação do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil de 23 de março de 1959.


Não concebemos a obra de arte nem como a "máquina" nem como o "objeto", mas como um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte supera o mecanismo material sobre o qual repousa, não por uma virtude extraterrena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt objetiva) e por criar em si uma significação tácita (Merleau-Ponty) que emerge pela primeira vez.


A obra de arte seria similar a um organismo vivo. A ausência de moldura ou de suporte a traria para dentro do espaço real _ tirar a arte de seu pedestal, inseri-la na vida _ assim o ser humano passaria a fazer parte natural da obra. Relações estabelecidas e trocas efetuadas o sujeito faria e refaria a obra todo o tempo. O suporte, desse modo, deixaria de ser a tela ou a base da escultura para ser o próprio corpo. Esta substituição de um suporte convencionado por um suporte natural, indica o caráter radical da arte neoconcreta. Ela pretendia realizar-se entre a natureza e a cultura, quase antes dessa, como formulação primeira do real.

"O Pensamento selvagem" ao filósofo Merleau-Ponty. Neste livro tomamos conhecimento de que há dois modos diferentes de pensamento científico, um aproximadamente ajustado ao domínio da percepção, e ao da imaginação, e o outro deslocado; como se as relações necessárias, objeto de toda ciência, neolítica ou moderna, pudessem ser atingidas por dois caminhos diferentes: um muito próximo da intuição sensível e outro mais distanciado.
Ronaldo Brito afirma que o neoconcretismo estaria centrado na espécie de positividade da tradição construtiva - a arte como instrumento de construção da sociedade. Seria então um movimento contraditório visto que polemizaria, pela própria prática dos artistas, com seus postulados e trabalharia de modo a rompê-los parcialmente. Na visão desse crítico, o neoconcreto seria o vértice da consciência construtiva brasileira e simultaneamente o agente de sua crise.


Lygia Pape discorda desta afirmação e afirma que no neoconcreto a idéia de "inventar" coisas novas seria uma postura revolucionária que não implicava nem em política nem em participação.


Fazendo a ligação dessas opiniões anteriores, concluiríamos que o neoconcreto estaria procurando outros caminhos. Caminhos mais sensíveis. O manifesto postulava o que havia sido aprendido através do que fora experimentado. Desta forma, experimentar seria o fazer que se confunde com o ser _ ser que se construiria através do sensível. E, este aprendizado envolveria todo o corpo. Vale dizer que a arte não seria submetida apenas à vontade de certeza e precisão, ao extremo racionalismo construtivista.


Também a participação do espectador na obra, fazendo com que ele tomasse parte na sua explicitação, despertaria nele a consciência de poder ser agente da mudança.


Essa transferência do suporte artístico para o próprio corpo e a conscientização de que podemos ser agentes da mudança, teria sua origem filosófica mais remota em Nietzsche que no final do século passado escreveu suas opiniões sobre aqueles que desprezavam o corpo, aconselhando-os a dizerem adeus ao próprio corpo e por conseguinte, ficarem mudos: _"Tudo é corpo e nada mais; a alma é simplesmente o nome de qualquer coisa do corpo."

ICONOGRAFIA

8- Uma das xilogravuras da série Tecelares
Cf.: PAPE,Lygia et alii, op. cit.,1983, p.8.


Apresentada na I Exposição Neoconcreta, essa xilogravura apresenta uma pesquisa feita dentro de um vocabulário propositalmente reduzido, para chegar a composições complexas onde o rigor se torna tensão e drama. É uma fase de grandes planos negros, compostos, nos quais as coisas deixam de ser o que são e fazem ver o seu outro. Brinca-se com o espaço, o que é figura , o que é fundo? O que é indivíduo, o que é sociedade? O que é dentro, o que é‚ fora?... O que é sensibilidade, o que é razão?


9- Balé Neoconcreto.
Cf.: Revista Galeria / 21 , foto: Fernando Duarte
Os "balés neoconcretos" tinham como suporte da arte o próprio corpo.

"No 'Balé I', haviam quatro cilindros brancos e quatro paralelogramos na cor zarcão; com dois metros de altura e rodinhas embaixo. As pessoas escondidas dentro das formas, faziam o deslocamento, o corpo era o motor. O balé era baseado em poema de Reynaldo Jardim. A coreografia seguia este poema o qual, só possuía duas palavras: alvo e olho, que se repetiam através de deslocações no papel. Você só via formas geométricas no palco. O som, feito pelo Reynaldo Jardim, com uma música de duas notas só, uma percussão no piano: pam, pam - pam/ pam - pam".

ICONOGRAFIA:

10- Poema De Reynaldo Jardim
Cf.: Seção de documentação do MAM.

"Quanto ao "Balé II", este eram só duas placas grandes, de dois metros X dois metros. Um quadrado rosa e um quadrado com uma tira azul em cima. As formas tinham também rodinhas mas só se deslocavam num sentido ortogonal. A coreografia era mais rígida. O fundo também era negro e havia um momento muito interessante, em que o quadrado rosa entrava no fundo do palco e se transformava em espaço, enquanto o negro parecia ser a matéria. A inversão obtida era muito bonita".

Segundo Arnheim , o poema concreto se serve de cadeias e não adota os critérios do lógico, provocando uma reação na mente do leitor, com todos os elementos se fundindo num todo organizado. Assim também procediam os balés, inclusive tendo o primeiro deles a coreografia baseada num desses poemas, conforme a descrição da artista.


Os balés Neoconcretos poderiam ser chamados de balés orgânicos pois, além de terem o próprio corpo como suporte da obra de arte, apontavam para o caráter não conclusivo do raciocínio. Eles manifestavam uma multiplicidade de relações, ambigüidades e contradições que direcionavam o espectador a completar a obra, tirando-o da passividade habitual.
"O balé neoconcreto esconde o corpo para revelá-lo, não há bailarinos, há dança."


Os balés só entendem as partes na medida em que formam o todo. Esse todo que pode ser a dança ou a cultura / sociedade. Assim, também o indivíduo só se revela em seu contexto cultural e social. A ambigüidade existente nos balés articula a atenção dos espectadores, a fim de que ele perceba essa unidade absoluta.

ICONOGRAFIA

11- Lygia Pape mostra o seu livro da criação na II Exposição de Arte Neoconcreta
Cf.: Catálogo da exposição "Neoconcretismo / 1959-1961", Galeria de Arte Banerj, setembro de 1984.

Notas:

1-GULLAR, Ferreira, in MORAIS, Frederico. Neoconcretismo/1959-1961. Exhibition Catalogue Banerj Gallery. Rio de Janeiro: n.p., 1984, n.pag.
2-GULLAR, Ferreira et al. Manifesto Neoconcreto. Jornal do Brasil, Suplemento Dominical . Rio de Janeiro: 1959, n.pag.
3-GULLAR, Ferreira, op. cit, 1984, n.pag.
4-LÉVI-STRAUSS,Claude, op. cit., 1989, p. 30.
5-BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo. Malasartes. Rio de Janeiro: (3): 9-13, Apr./ Jun. 1976 , p. 9.
6-NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra.Tradução de Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo, Hemus Editora Limitada, s/d.
7-ARNHEIM, Rudolf. Arte & percepção visual. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989, pp. 103, 104.
8-DOCTORS, Marcio. Lygia Pape , a radicalidade do real. Galeria. São Paulo, Área Editorial Ltda, 21: 68-75, 1990, p. 73.

Ensaio extraído de:

PINTO, Regina Célia. "Quatro olhares à procura de um leitor, mulheres importantes, arte e identidade". Rio de Janeiro, 1994. 415p. Tese (Pós Graduação em Artes visuais, Mestrado em História da Arte, área de Antropologia da Arte ) - Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro.