Por
volta do final da década de cinqüenta, os cariocas fizeram
uma revisão crítica em bloco de sua postura anterior. Denunciaram
o excesso de dogmatismo a que tinha levado o concretismo, fazendo arte
segundo receitas e que terminava, em vez de integrar a arte na vida, submetendo-a
a um esquema de produção de potencial crítico e artístico
zero.
Foi lançado então, no Suplemento Dominical do Jornal do
Brasil de 23 de março de 1959, o Manifesto Neoconcretista; tendo
a I Exposição de Arte Neoconcreta a participação
de Lygia Clark, Lygia Pape, Amílcar de Castro, Franz Weissmann,
Reynaldo Jardim, Sergio Camargo, Theon Spanudis e Ferreira Gullar. A essa
exposição se sucederam outras nas quais participaram outros
artistas.
Lygia
Pape nos concedeu esse depoimento:
"Nós
nos separamos do Grupo Concreto de São Paulo porque eles queriam
criar um projeto de dez anos de trabalho para o futuro. O grupo do Rio
achou que era racionalismo demais. Nós queríamos trabalhar
com a intuição, mais soltos.
Trocávamos muita informação; havia mesmo uma certa
impregnação na medida em que um conversava com o outro.
O Neoconcreto não surgiu por acaso, também não
foi uma coisa que nós elaboramos e depois começamos a
trabalhar em cima. Foram as experimentações feitas antes
que nos levaram a ele. Depois, o Gullar que era poeta, "copy-desk"
do Jornal do Brasil, escrevia muito bem e estudava a teoria da arte,
ficou encarregado de redigir um texto que tivesse a ver com o trabalho
de todo mundo _ um texto posterior às obras.
Havia
uma total liberdade, nada era dogmático. Todo mundo estava disposto
a inventar. Não trabalhar só categorias convencionais.
Na escultura, a idéia era destruir a base _ fazer um objeto que
assim se chamasse mas que pudesse ser posto em qualquer posição.
A pintura também não seria mais envolvida por uma moldura,
avançaria no espaço. Eu mesma inventei um livro, chamado
"Livro da Criação", onde narrava a criação
do mundo sem palavras, meio artes plásticas, meio poesia. Esse
sentido de invenção, de criação era o que
realmente caracterizava o movimento. Naquela época ainda existia
o pensamento de um quadro ser uma pintura na parede, para mera contemplação.
Não tinha o sentido de participação, de uso de
materiais diferentes; então tudo isso deu um sentido muito grande
de liberdade. Na época não era fácil, nós
tínhamos o mundo em oposição a nós."
Mário Pedrosa observou, com sua habitual acuidade, que a arte
neoconcreta era "a pré-história da arte brasileira".
Tal definição, que não pode ser entendida em termos
literais, sublinha o caráter radical do movimento neoconcreto:
pré-histórico na medida que questiona os fundamentos da
linguagem artística existente e propõe uma volta ao "começo"
da arte.
O Manifesto Neoconcreto, apoiando-se na filosofia de Merleau-Ponty,
recuperava o humano, reabilitando o sensível, desqualificado
desde Platão e procurando-o fazer fundamento de um conhecimento
real. Tinha a intenção de revitalizar o relacionamento
do sujeito com seu trabalho.
ICONOGRAFIA
7-
Manifesto Neoconcreto
Cf.: Catálogo da exposição Neoconcretismo / 1959-1961,
Galeria de Arte Banerj, setembro de 1984.
É conveniente reparar na moderna diagramação do
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil de 23 de março de 1959.
Não concebemos a obra de arte nem como a "máquina"
nem como o "objeto", mas como um quasi-corpus, isto é,
um ser cuja realidade não se esgota nas relações
exteriores de seus elementos; um ser decomponível em partes pela
análise, só se dá plenamente à abordagem
direta, fenomenológica. Acreditamos que a obra de arte supera
o mecanismo material sobre o qual repousa, não por uma virtude
extraterrena: supera-o por transcender essas relações
mecânicas (que a Gestalt objetiva) e por criar em si uma significação
tácita (Merleau-Ponty) que emerge pela primeira vez.
A obra de arte seria similar a um organismo vivo. A ausência de
moldura ou de suporte a traria para dentro do espaço real _ tirar
a arte de seu pedestal, inseri-la na vida _ assim o ser humano passaria
a fazer parte natural da obra. Relações estabelecidas
e trocas efetuadas o sujeito faria e refaria a obra todo o tempo. O
suporte, desse modo, deixaria de ser a tela ou a base da escultura para
ser o próprio corpo. Esta substituição de um suporte
convencionado por um suporte natural, indica o caráter radical
da arte neoconcreta. Ela pretendia realizar-se entre a natureza e a
cultura, quase antes dessa, como formulação primeira do
real.
"O
Pensamento selvagem" ao filósofo Merleau-Ponty. Neste livro
tomamos conhecimento de que há dois modos diferentes de pensamento
científico, um aproximadamente ajustado ao domínio da
percepção, e ao da imaginação, e o outro
deslocado; como se as relações necessárias, objeto
de toda ciência, neolítica ou moderna, pudessem ser atingidas
por dois caminhos diferentes: um muito próximo da intuição
sensível e outro mais distanciado.
Ronaldo Brito afirma que o neoconcretismo estaria centrado na espécie
de positividade da tradição construtiva - a arte como
instrumento de construção da sociedade. Seria então
um movimento contraditório visto que polemizaria, pela própria
prática dos artistas, com seus postulados e trabalharia de modo
a rompê-los parcialmente. Na visão desse crítico,
o neoconcreto seria o vértice da consciência construtiva
brasileira e simultaneamente o agente de sua crise.
Lygia Pape discorda desta afirmação e afirma que no neoconcreto
a idéia de "inventar" coisas novas seria uma postura
revolucionária que não implicava nem em política
nem em participação.
Fazendo a ligação dessas opiniões anteriores, concluiríamos
que o neoconcreto estaria procurando outros caminhos. Caminhos mais
sensíveis. O manifesto postulava o que havia sido aprendido através
do que fora experimentado. Desta forma, experimentar seria o fazer que
se confunde com o ser _ ser que se construiria através do sensível.
E, este aprendizado envolveria todo o corpo. Vale dizer que a arte não
seria submetida apenas à vontade de certeza e precisão,
ao extremo racionalismo construtivista.
Também a participação do espectador na obra, fazendo
com que ele tomasse parte na sua explicitação, despertaria
nele a consciência de poder ser agente da mudança.
Essa transferência do suporte artístico para o próprio
corpo e a conscientização de que podemos ser agentes da
mudança, teria sua origem filosófica mais remota em Nietzsche
que no final do século passado escreveu suas opiniões
sobre aqueles que desprezavam o corpo, aconselhando-os a dizerem adeus
ao próprio corpo e por conseguinte, ficarem mudos: _"Tudo
é corpo e nada mais; a alma é simplesmente o nome de qualquer
coisa do corpo."
ICONOGRAFIA
8-
Uma das xilogravuras da série Tecelares
Cf.: PAPE,Lygia et alii, op. cit.,1983, p.8.
Apresentada na I Exposição Neoconcreta, essa xilogravura
apresenta uma pesquisa feita dentro de um vocabulário propositalmente
reduzido, para chegar a composições complexas onde o rigor
se torna tensão e drama. É uma fase de grandes planos
negros, compostos, nos quais as coisas deixam de ser o que são
e fazem ver o seu outro. Brinca-se com o espaço, o que é
figura , o que é fundo? O que é indivíduo, o que
é sociedade? O que é dentro, o que é fora?...
O que é sensibilidade, o que é razão?
9- Balé Neoconcreto.
Cf.: Revista Galeria / 21 , foto: Fernando Duarte
Os "balés neoconcretos" tinham como suporte da arte
o próprio corpo.
"No
'Balé I', haviam quatro cilindros brancos e quatro paralelogramos
na cor zarcão; com dois metros de altura e rodinhas embaixo.
As pessoas escondidas dentro das formas, faziam o deslocamento, o corpo
era o motor. O balé era baseado em poema de Reynaldo Jardim.
A coreografia seguia este poema o qual, só possuía duas
palavras: alvo e olho, que se repetiam através
de deslocações no papel. Você só via formas
geométricas no palco. O som, feito pelo Reynaldo Jardim, com
uma música de duas notas só, uma percussão no piano:
pam, pam - pam/ pam - pam".
ICONOGRAFIA:
10-
Poema De Reynaldo Jardim
Cf.: Seção de documentação do MAM.
"Quanto
ao "Balé II", este eram só duas placas grandes,
de dois metros X dois metros. Um quadrado rosa e um quadrado com uma
tira azul em cima. As formas tinham também rodinhas mas só
se deslocavam num sentido ortogonal. A coreografia era mais rígida.
O fundo também era negro e havia um momento muito interessante,
em que o quadrado rosa entrava no fundo do palco e se transformava em
espaço, enquanto o negro parecia ser a matéria. A inversão
obtida era muito bonita".
Segundo
Arnheim , o poema concreto se serve de cadeias e não adota os
critérios do lógico, provocando uma reação
na mente do leitor, com todos os elementos se fundindo num todo organizado.
Assim também procediam os balés, inclusive tendo o primeiro
deles a coreografia baseada num desses poemas, conforme a descrição
da artista.
Os balés Neoconcretos poderiam ser chamados de balés orgânicos
pois, além de terem o próprio corpo como suporte da obra
de arte, apontavam para o caráter não conclusivo do raciocínio.
Eles manifestavam uma multiplicidade de relações, ambigüidades
e contradições que direcionavam o espectador a completar
a obra, tirando-o da passividade habitual.
"O balé neoconcreto esconde o corpo para revelá-lo,
não há bailarinos, há dança."
Os balés só entendem as partes na medida em que formam
o todo. Esse todo que pode ser a dança ou a cultura / sociedade.
Assim, também o indivíduo só se revela em seu contexto
cultural e social. A ambigüidade existente nos balés articula
a atenção dos espectadores, a fim de que ele perceba essa
unidade absoluta.
ICONOGRAFIA
11-
Lygia Pape mostra o seu livro da criação na II Exposição
de Arte Neoconcreta
Cf.: Catálogo da exposição "Neoconcretismo
/ 1959-1961", Galeria de Arte Banerj, setembro de 1984.
Notas:
1-GULLAR,
Ferreira, in MORAIS, Frederico. Neoconcretismo/1959-1961. Exhibition
Catalogue Banerj Gallery. Rio de Janeiro: n.p., 1984, n.pag.
2-GULLAR, Ferreira et al. Manifesto Neoconcreto. Jornal do Brasil,
Suplemento Dominical . Rio de Janeiro: 1959, n.pag.
3-GULLAR, Ferreira, op. cit, 1984, n.pag.
4-LÉVI-STRAUSS,Claude, op. cit., 1989, p. 30.
5-BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo. Malasartes. Rio de Janeiro: (3): 9-13,
Apr./ Jun. 1976 , p. 9.
6-NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra.Tradução
de Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo, Hemus Editora Limitada,
s/d.
7-ARNHEIM, Rudolf. Arte & percepção visual. São
Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989, pp. 103, 104.
8-DOCTORS, Marcio. Lygia Pape , a radicalidade do real. Galeria. São
Paulo, Área Editorial Ltda, 21: 68-75, 1990, p. 73.
Ensaio
extraído de:
PINTO,
Regina Célia. "Quatro olhares à procura de um leitor,
mulheres importantes, arte e identidade". Rio de Janeiro, 1994.
415p. Tese (Pós Graduação em Artes visuais, Mestrado
em História da Arte, área de Antropologia da Arte ) -
Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro.