BIBLIOTHECA DAS MARAVILHAS

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Bibliotheca das Maravilhas

"A literatura daqui a 50 anos ninguém sabe como será. Mas haverá mesmo daqui-a-50-anos?" (carta de Fernando Sabino para Clarice Lispector em 6 de julho de 1946) *1


Com esse projeto interessa-me examinar, entre outras coisas, o impacto cultural e as possibilidades criadas pelo computador enquanto máquina capaz de produzir livros e bibliotecas.
A Bibliotheca das Maravilhas é uma coleção de "livros de artista" na web. Esses livros são narrativas eletrônicas que utilizam várias mídias e processos: imagem, som, texto, movimento, jogo, simulação, programação, interatividade, ou a sua simulação.


A biblioteca que começou a ser formada em 1999, já possui seis volumes: o "Branco e o Negro, Reflexões sobre a Neblina" (1999), o "Livro de Areia"(2001), "O Psiquiatra, a Net.art / Web.art e outras histórias"(2002), "Novíssima Canção do Exílio: Virtualidade Sabiá"(2003), "Olhando Axolotes"(2004) e o último volume "Histórias de Minha Varanda / Alice in the Wonderbalcony" (2004).

Minha pesquisa tem sempre o OLHAR como ponto de partida. Seja esse o olhar sobre a neblina (1999), o olhar horrorizado (2001), o olhar sobre a loucura (2002), o olhar sobre a cultura (2003), o olhar sobre os axolotes, que examina mais uma vez o olhar sobre a neblina ou a impossibilidade de ver com clareza, mas com um outro enfoque (2004) e "Alice in the Wonderbalcony" (2004) , o olhar sobre a felicidade, a magia da infância e o non sense.

Algumas palavras sobre "Olhar Axolotes":

Filosoficamente, segundo Merleau-Ponty, o mundo é o que vemos, e, contudo precisamos aprender a vê-lo. Nesse sentido, minha principal ocupação de todos os dias é a de aprender a ver. Todavia...

Cada um vê o mundo à sua feição e assim o diálogo Eu X Mundo difere de pessoa para pessoa. Podemos exemplificar melhor através da metáfora das cores: _Com quem estará a verdade, com os daltônicos que enxergam o verde > vermelho e vice-versa ou com os ditos seres normais que vêem o vermelho > vermelho e o verde > verde? Com os últimos porque eles são a maioria? ... Dizem que alguns animais enxergam o mundo apenas em preto e branco. De que cor veria o mundo um extraterrestre? De que cor afinal é o mundo se as próprias cores são simples classificações?
Parece que estabelecemos um impasse: _ A realidade é possível? Seria possível, como sugeriu a Fenomenologia, a Arte tornar visível o que não é visível? A Realidade não seria sempre uma Fantástica Fantasia?

E as novas mídias? E as novas narrativas?Os pixels se iluminam e surge a legenda: "Olhando Axolotes... " or Refaz-se no mundo a magia de uma narrativa, e, imediatamente, cada um se investe da atitude apropriada para acompanhá-la: a "visão" do sujeito espectador (com toda a sua cegueira) e o olhar que emana do objeto-livro eletrônico (com toda a sua malícia) batem-se no duelo de interpretação, simulação e interatividade. Uma mulher que de tanto amar ou de tanto olhar, transforma-se em axolote. "O sonho é um ponto de vista. É um lugar de onde se vê. O pesadelo é um jeito de encarar o mundo nos olhos de quem sonha". Ou seja, os sonhos nos permitem vislumbrar alteridades, enquanto nos pesadelos encontramos o medo que o "outro" pode nos despertar. No mundo ficcional, o narrador é esse sujeito capaz de guiar um olhar para o ponto de vista do sonho, enquanto, simultaneamente, reverte esse olhar para o pesadelo de entrar no aquário, mundo aquático desconhecido. Atitude essa que pode provocar a suspensão da cegueira que é inerente a cada olhar, permitindo-se que este possa distanciar-se, reflexivamente, para ver-se enquanto olha ou não...


1 - "O branco e o negro, reflexões sobre a neblina", foi criado a partir do fabuloso "O vermelho e o negro" *2 de Stendhal, e da poesia "Neblina" *3 de Nelson Ascher e do pensamento antropológico-filosófico de Jean Baudrillard em "Simulacros e simulações" *4

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2- O "Livro de areia" baseou-se no desconcertante "Livro de areia" *5 de Jorge Luiz Borges, no dramático "Navio negreiro"*6 de Castro Alves e nos textos muito especiais que a artista plástica Hellenice Dornelles enviou de New York para o Projeto Fronteiras *7. O livro de areia foi realizado imediatamente após 11 de setembro de 2001.


3- O alienista, a net.art/ web.art e outras histórias é uma paródia do livro de Machado de Assis, "O alienista e outras histórias"*8.
Sendo Machado de Assis um dos melhores escritores brasileiros, esse hipertexto mostra fragmentos do alenista de Machado de Assis também, o que o torna mais rico. O projeto discute loucura, artes plásticas, net.art e web.art, com ironia e senso de humor.

4- Novíssima Canção do Exílio: Virtualidade Sabiá é uma narrativa experimental que confronta o real e o virtual através de duas versões do mesmo texto/hipertexto:
" Um livro de artista impresso.
" Um livro de artista multimídia e net/digital (web site).
"Virtualidade Sabiá" também aponta semelhanças entre a Cultura Brasileira e a Cultura Mexicana e brinca com algumas paródias do poema "Canção do Exílio", 1843, de autoria do poeta brasileiro Gonçalves Dias e aplica o pensamento de Octavio Paz, a respeito da cultura mexicana ("Labirinto da Solidão"*9), na cultura brasileira.

5- Olhando Axolotls instala o Realismo Fantástico de Julio Cortazar *10 na Bibliotheca das Maravilhas. Trata-se de uma narrativa visual, algumas reflexões e um jogo. Baseia-se também no pensamento do ensaista brasileiro Gustavo Bernardo *11.

6- "Alice in the "Wonderbalcony"' é uma mistura de realidade e fantasia. A varanda é realmente a varanda do meu apartamento no Leblon, Rio de Janeiro, Brasil.O livro se baseia em Lewis Carrol *. As conhecidas aventuras de Aice são uma coleção de elementos disparatados e textos non sense. Eu tentei transportar o clima de Alice para a minha varanda. Não estou contando a história de Lewis Carrol. Entre outras coisas estou contando histórias da minha varanda. Esse livro de artista eletrônico é também um pretexto para escrever sobre palavras e significados.

Procuro uma narrativa que seja própria e funcione perfeitamente no livro eletrônico (e-book). Ao mesmo tempo, penso que "O vermelho e o negro", o "Livro de areia", "O Alienista" e o Labirinto da Solidão ou os poemas como Canção do Exílio, por exemplo, devem continuar sendo lidos no papel, como antes. Os livros que têm como suporte o papel na maior parte das vezes são lineares e possuem uma função, a meu ver muito especial: a de despertar a imaginação do leitor, de fazê-lo criar em sua mente o mundo onde a narrativa se desenvolve.


Os livros de artista eletrônicos do meu projeto não são lineares, não possuem princípio ou fim. Jogam com a imagem, som, jogo, interatividade, programação e despertam mais a intuição do que a imaginação do leitor. Através da intuição, de descobrir onde se clica e como funciona, o leitor /operador / fruidor, vai fazendo sua leitura e descobrindo muito mais do que o seu funcionamento. Interagindo ele pode descobrir, por exemplo, o conceito através da qual a narrativa se desenvolve, a mensagem que está sendo passada e obviamente, ter vontade de ler os livros tradicionais que serviram de base para esta sua pós-moderna aventura "literária".


Já as narrativas dos mesmos livros de artista reais funcionam de outra forma:


"A importância do livro de artista ou livro-objeto, é que nele palavras, imagens e signos se transformam em organismos plásticos que se movem ao longo das páginas numa sequência variável, cinética, onde a inovação, tanto na forma como no conteúdo é um resultado da evolução (a partir de Mallarmé até os dias de hoje) pela qual vem passando esse meio de expressão, desafiando o leitor para um novo olhar e uma nova relação com a página impressa." Alex Hamburguer, 1994

Uspênski *10 fala sobre as "molduras" do texto artístico. Eis o trecho:

A atualidade do problema das "molduras', ou seja, das fronteiras da obra artística, apresenta-se de uma forma bastante evidente. Com efeito, na obra artística, seja ela uma obra de literatura, de pintura etc., estamos diante de um mundo especial - com seu tempo e seu espaço, seu sistema de avaliação, suas normas de conduta - mundo esse em relação ao qual nós ocupamos (de qualquer modo, no começo da percepção) uma posição necessariamente externa, a do observador alheio. Aos poucos vamos penetrando nesse mundo, isto é, familiarizamo-nos com suas normas, passamos a viver nele, tendo alcançado a capacidade de percebê-lo, por assim dizer, a partir "de dentro" e não "de fora"; em outras palavras, o leitor situa-se - de uma ou de outra maneira - num ponto de vista interno em relação a dada obra. Depois, entretanto, tem que abandonar esse mundo - voltar a seu próprio ponto de vista, do qual se havia abstraído consideravelmente durante o processo de percepção da obra artística. Em vista disso, adquire uma importância muito grande o processo da passagem do mundo do real para o mundo do representado, o problema da organização especial das "molduras" da obra de arte" (Uspênski 1979: 174)

A Bibliotheca das Maravilhas é uma pesquisa artística sobre narrativas visuais e sobre as fronteiras entre os diferentes "mediums" analisados.

Referências bibliográficas:


*1 SABINO, Fernando; LISPECTOR, Clarice. Cartas perto do coração. Rio de Janeiro, Record, 2001.
*2 STENDHAL, Marie -Henri Beyle. O vermelho e o negro. Porto alegre: Editora Globo, 1971.
*3 ASCHER, Nelson. Neblina, In: Esses poetas: uma antologia dos anos 90. Organização de Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 1998.
*4 BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulações. Lisboa: Relógio d' Água Editorial, 199.1
*5 BORGES, Jorge Luis. Livro de areia. Porto Alegre, Globo, 1978.
*6 CASTRO ALVES, Antonio de. Navio Negreiro / Nossos Clássicos. Rio de Janeiro, Agir, 1960.
*7 DORNELLES, Hellenice. E-mails para o Grupo Fronteiras. Rio de Janeiro, http://www.yahoo.com.br/ grupos, Fronteiras 2001.
*8 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria . O alienista. São Paulo: FTD, 1994. (Grandes leituras).
*9 PAZ, Octavio. O labirinto da solidão e post-scriptum (The Labyrinth of Solitude: The Other Mexico, Return to the Labyrinth of Solitude, Mexico and the United States, the Philanthropic Ogre ). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.
*10 USPÊNSKI , B. A.. Elementos estruturais comuns às diferentes formas de arte. Princípios gerais da organização da obra em pintura e literatura, in Boris Schnaiderman (org.), Semiótica Russa, trad. Aurora Fornoni Bernardini et alii (original russo). SP, Perspectiva, Col. Debates 162, 1979, p. 163-218.
*11 CORTAZAR, Julio . Final de Jogo. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971.
*12 BERNARDO, Gustavo. A dúvida de Flusser - filosofia e literatura. São Paulo, Globo, 2002.

URL:
BELLEI, Sergio Luiz Prado. O fim do livro e o livro sem fim. http://members.tripod.com/~lfilipe/bellei.html#S
* 13 Aventuras de Alice / Lewis Carroll, tradução e organização de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Summus, 1980

Regina Célia Pinto